
Morro de ciúmes de quem tem lembranças vivas da infância. Eu tenho poucas. Algumas histórias desconfio que lembro mais por que ouvi de alguém do que por que realmente lembro dos detalhes. Uma pena, pois era super feliz e livre. Mas, para compensar, tenho também a vantagem de esquecer histórias ruins e brigas. Memória seletiva neste caso, imagino eu.
Quando lembro da minha infância, me lembro bem solta. Correndo e brincando na rua com vizinhos da minha idade e minhas irmãs. Para o colégio eu ia a pé, sem medo e sem super proteção. Aula de piano era aula de ir de bicicleta, que largava andonada na garagem da minha professora. Em alguma época fui para escola de perua escolar, que uma vez bateu em uma esquina e fiquei com um galo monstruosamente grande na testa. Depois que mudamos para a casa da Alberto, íamos para a escola de ônibus normal. Comprávamos passes com desconto na escola e íamos, as três, pois a caçula estudava em outro horário. No ônibus lotado a terceira tinha que segurar na minha cintura, pois não alcançava a barra do teto.
Motorista, carro blindado, esquema de segurança na porta da escola, garagens de gaiola nos condomínios cada vez mais fechados? Nada disso fazia parte da minha vida. Ainda bem.

Minha realidade era estar livre. Algo que prezo até hoje, como boa aquariana.
Brincavamos na rua até mamãe aparecer na janela chamando para o banho e jantar.

Bons tempos.
Brigava de vez em quando com alguém. Aprendi a resolver minhas brigas sozinha. Me descolava. Era assim.
Quando saíamos de excursão na escola era o dia de levar um lanche especial, excepcionalmente até com uma latinha de refrigerante. Subíamos no ônibus fretado e íamos sei lá para onde, todo mundo sem cinto de segurança fazendo o maior barraco, com cabeça para fora da janela e mexendo com todo mundo que passava. Era um evento.
Esta manhã pensei no quanto a vida anda complicada para as crianças de cidades grandes brasileiras. Entrando no trem para ir para minha ginástica escuto uma falação incomum dentro do vagão, que nem parecia tão cheio. Mero engano. Olhando com atenção percebi que estava lotado de pequenas cabecinhas que sentavam sozinhas em grupos de quatro nas enormes poltronas do vagão de segunda classe.
Gentis e educados, responderam cordialmente ao meu “Bonjour”. Nenhuma paranoia em falar com estranhos, pensei. Sentei entre eles, que conversavam animadamente porém sem incomodar.

E eles seguiram a viagem animados e sozinhos. Realmente fofos. Deveriam ter de 6 a 8 anos, imagino eu. E estavam lá, na deles, sem nenhum assedio de professor e sem alguém blindando a criançada.
Perto da estação de Lausanne, uma professora finalmente veio e avisou ao grupo que se preparassem, colocando os bonés, vestindo as mochilas e se segurando firme para evitar o solavanco da parada do trem. Deveriam sair todos juntos. E assim foi.
Fora do trem pararam um pouquinho adiante, para não bloquear o caminho dos outros. Lá no ponto de encontro duas professoras contaram em voz alta 19 crianças. Uma professora para quase 10 crianças. Nada mal.

Disciplinados às instruções da professora, que não precisou gritar nem ficar descabelada para ser atendida, montaram uma fila indiana não milimetricamente reta mas funcional. Alí disciplina era compatível com a evidente diversão.
Estavam todos radiantes, coradinhos. Se divertindo.
Segui a excursão com curiosidade, até que nos separamos. Virei para a direita e eles para a esquerda.
Acho que hoje estas crianças exercitaram vários valores simples. Bravo!
Fico aqui agora imaginando se algumas crianças não seriam mais seguras e bem preparadas se pudessem trafegar pela vida em vagão de segunda classe, aprendendo a conviver sem medos, paranoias ou super proteção. Eu pude, ainda bem!